sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O último leitor

por Mirian Conci*

“Porque escrever não é viver, porque ler também não é.”
(TOSCANA, 2005, P. 48)

O último leitor (2005) de David Toscana é um romance mexicano contemporâneo que trata de várias questões sobre a literatura, o homem e o tempo. A maneira como esses temas são abordados é que dão um tom especial e único ao Último leitor. A primeira pergunta que se faz ao ler o romance é: Quem é o último leitor? E num jogo tenso, o leitor sente um misto de surpresa, estupidez e um certo prazer ansioso ao se dar conta que é o próprio último leitor. A segunda pergunta provável, antes mesmo de se começar a ler é: se há um último, deve haver outros leitores, quem são eles? Esse texto não tem a pretensão de responder perguntas, mas de levantar alguns questionamentos relacionados ao último leitor, à literatura e compará-los com outro personagem: David, do filme Vanilla Sky, sob uma perspectiva anacrônica.

As relações afetivas entre as personagens primam à característica dos livros que tratam como tema a seca; são tão secos quanto a imagem do lugar, da vegetação, do ar. O lugar chama-se Icamole e é lá que acontece um crime. Como em todos os lugares secos, a água em Icamole também é escassa e motivo de cobiça. Remigio possui um poço que comporta sempre mais água que os outros e tarda a findar, já que seu consumo se resume praticamente a tomar banho e regar o abacateiro. Por isso é alvo de reboliço e inveja. Certo dia, ao buscar água, Remigio sente algo em seu poço, quando averigua, percebe se tratar do corpo de uma menina e ao retirá-la de lá, nota que o sapato dela se perdeu. Com medo de ser preso, já que a menina estava em sua propriedade e um sapato dela se perdera tornando-se prova incontestável, resolveu recorrer ao pai, Lúcio.

Lúcio vê na situação do crime uma cena em potencial de um romance e é através da literatura que Lúcio tenta solucionar não apenas os problemas do filho, mas as tantas outras inquietudes que lhe aparecem, como fome e desejo. Ao longo do romance Lúcio não descreve muitas experiências e nem tenta solucionar seus problemas, mas principalmente procura solucionar os problemas dos outros através da literatura mas não se dá conta de que não consegue suprir as próprias necessidades, os próprios hiatos, como se sua existência fosse a própria personificação da literatura, esperando um leitor real completá-la. Esquece-se talvez, por estar muito preocupado classificando em bons e ruins os seus romances. E quando percebe que não há experiência que substitua o grande hiato que é a vida, quando se dá conta que a literatura é um monte de leituras da vida e vice-versa, acaba por se auto-censurar num ato de lucidez, notando talvez, que ele mesmo deveria ser o leitor ímpar de sua vida e não vivê-la fragmentado através dos olhos das personagens de sua estante.

No filme Vanilla Sky (2001) de direção de Cameron Crowe, algo similar acontece. David Aames é um personagem bem sucedido em todas as áreas da vida, no entanto, lhe falta encantamento para sentir-se pleno, até o dia que conhece Sofia e apaixona-se. A partir desse instante, uma série de fatos acontecem até quase o final do filme, onde perdem-se as fronteiras entre ficção e realidade. Ao final, compreende-se que uma empresa conhecida por Life Extension fecha um contrato com o personagem David, a fim de congelá-lo para que numa extensão virtual possa viver a vida “como uma pintura”, através das principais personagens que povoaram sua vida, acolhendo a ela tudo que lhe apreciar mais. Um traço interessante é que as escolhas feitas para servirem de “cenário” numa vida virtual de David, são exatamente suas referências culturais como filmes, personagens, livros, capas de discos, bandas, músicas, pintores, sabores, cores, etc., como se a arte e a literatura, preenchessem já virtualmente a vida, antes mesmo, dela como um todo, tornar-se virtual. Do contrário, a vida sem literatura e referências culturais, seria uma vida “sem fundo”, sem cenário, sem cor, uma vida censurável. Assim como Lúcio, que ao perceber o imenso vazio, o cenário sem cor e sabor que é sua vida, apropria-se dos cenários das personagens de seus romances preferidos, para vivenciar através do outro as experiências.

O que une encantadoramente O último leitor e Vanilla Sky é a escolha de ambos pela vida, ao se darem conta que a melhor leitura é a que cada um faz enquanto último leitor de suas vidas. Por mais que a arte imite a vida e vice-versa, nada substitui a incrível aventura de viver. E viver não implica num quadro perfeito com as principais referências culturais (e as piores censuradas, excluídas), implica, sim, numa saga incontrolável porque nenhuma experiência, que não a da vida, pode assegurar as vivências boas ou ruins, através das escolhas, do livre arbítrio, mesmo que implique em escolhas erradas.

Dessa forma, tanto Lúcio quanto David optam em correr o risco de se viver de verdade, e não vivenciar o que alguém já viveu em uma história, ou, criar uma vida virtual perfeita. Lúcio, após censurar tantos livros, acaba por também se censurar. David, se suicida na vida virtual, e um ponto relevante é que, como na vida virtual, os cenários que ele escolheu com referência em sua bagagem cultural, separou seu maior medo para encarar a vida real: se jogar de um prédio muito alto. É clara a alusão de que inclusive os nossos medos nos formam e são designados a nós por nós mesmos, ninguém os determina, senão, nós.

Como a justificativa qualificativa de um romance está justamente em seus segredos, torna-se óbvio “o não descobrimento” deles e consequentemente, um não apoderamento do tempo, da vida, da morte. Exatamente por isso a cena do crime é secundária, serve apenas de gancho para criar esse tempo ficcional que o personagem Lúcio vive. Descobrir o assassino seria o mesmo que dar o romance às baratas, pois deterioraria com seus segredos. Anamari ou Babette são no romance, a representação da morte, que como a literatura, vive à espreita do homem, cercando, para que um dia, o personagem ou o último leitor saia de seu tempo ficcional incontrolável do conhecimento e caia do tempo real da morte. “Entra apressadamente em casa para pegar o machado, e com a mesma pressa percorre o quintal, brandindo a arma, descarregando-a nuns galhos secos, vai que quem trouxe a menina está escondido por ali.” (TOSCANA, 2005, P.9) E esse dia chega quando Lúcio se dá conta de toda a ficção e “falsa vivência”: “Venham, minhas Babettes, minhas Anamaris, putinhas de planta e de ocasião, minhas eternas mulheres que inevitavelmente amanhecem desfeitas e sem vida”. (TOSCANA, 2005, P.152)

Lúcio fecha à chave a porta da biblioteca. (TOSCANA, 2005, P.155)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CROWE, Cameron. Vanilla Sky 2001.

TOSCANA, David. O último leitor. Casa da palavra: São Paulo, 2005.

* Acadêmica do 8º período do Curso de Letras da Unochapecó

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