sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O Mez da Grippe

por Juliane F. Kuhn


O mez da grippe, de Valêncio Xavier, foi publicado em 1998, pela Companhia das Letras. É uma obra que intriga o leitor logo na primeira página. Em uma mistura de realidade e ficção, a leitura se funde entre as notícias da época em que o Brasil sofreu com a epidemia de gripe espanhola e o mundo foi acossado pela ascensão do nazismo alemão. A cidade de Curitiba passa a ser uma cidade deserta, conforme alguns relatos do livro, no entanto, vasto campo para histórias que ficam entremeadas ao longo das páginas.

Como o poema que se desenrola ao longo do livro, contando a história de uma espécie de “flaneur” interiorano, um homem que vagueia pela cidade deserta pela gripe. O leitor é levado a acompanhar sua trajetória quando entra em uma casa mais habitada pela “hespanhola” do que por seus verdadeiros moradores. Quando encontra uma mulher febril e vai descrevendo suas características, a história vai ganhando contornos com o auxílio dos anúncios comerciais e os relatos de pessoas que viveram na época. A distância temporal entre a época em que a gripe espanhola assolava o Brasil e a época em que o livro foi publicado pode levar o leitor a uma idéia de releitura dos fatos, recortes de acontecimentos que fizeram parte de um período nebuloso da história.

Há um trecho do conto que relata um dos momentos do ápice da gripe: no poema que é escrito em meio às notícias e notificações públicas o homem que percorre a cidade entra a esmo em uma casa e possui uma mulher com febre. E aí vem a dúvida: “Ela geme/ baixinho, não mais de febre/ agora de gôzo?”

A dúvida imposta ao homem é a mesma reinante no resto da cidade, tomada pela febre. Esse trecho marca o momento em que todas as narrativas começam a ser regradas pela febre, febris em sua composição.

Além da gripe há as notícias sobre a iminência e desenrolar da 2ª Guerra Mundial, desde a expansão do domínio nazista pela Europa. Essas notícias, que parecem recortadas ao acaso, lembram uma leitura tomada pela febre, em que se chocam e misturam informações variadas sobre todos os assuntos ocorridos na sociedade, desde classificados de jornal a notícias dos avanços bélicos.

Entretanto, a medida que a epidemia de gripe vai avançando em Curitiba o texto também passa a ser tomado pela gripe. Ela passa a ser realmente o assunto central da obra, todas as outras histórias vão se evanescendo, vão sendo esquecidas ou menos comentadas ou, até mesmo, abafadas pela febre. As notícias de guerra, por exemplo, tão comentadas no início do livro, vão sendo deixadas de lado e virando somente manchetes bombásticas, rareando seu aparecimento nas páginas. A própria Guerra, preocupação central no mundo, passa para um segundo plano. Até que no auge de um delírio, que poderia se afirmar “febril”, aparece a manchete: “O KAISER ESTÁ COM HESPANHOLA”.

Assim, o que era desconsiderado a princípio (já que, como costumeiramente é feito, não se divulgou a real situação para não instaurar o caos) toma a frente e regula as relações na sociedade, que é dividida entre os que contraíram a gripe e os sãos. A própria redação do jornal que acompanha todos os fatos locais e internacionais é desfalcada pela epidemia.

Um estado (verdadeiramente de sítio, já que não era possível sair, para não contrair nem passar o vírus adiante) caótico que lembra algo de insanidade de toda a população. Mas o fato mais curioso é que toda o desenvolvimento da história se dá através da imprensa, que apazigua os possíveis acessos de pânico criados pelo temor da epidemia, bem como informa dos sucessos do que acontece lá fora. Entretanto, mesmo ela é aplacada pela febre e o final só conta com os números da tragédia, não da Guerra, mas da virose. Uma verdadeira narrativa do caos, em que realidade (?) e ficção não simplesmente se mesclam, mas se entretecem. Através de relatos que podem ser poemas, que podem ser notícias de jornais, que podem ser avisos de utilidade pública. Assim, traça-se um espaço vago para a certeza e o enigma da obra passa a ser o que realmente acontecia na época? Qual ponto da narrativa pode ser considerado um fato? Qual o limite da ficção febril num “mez da grippe”?

Um comentário:

Unknown disse...

Tem um conto nesse livro que me fascina. Aliás o fantastico dessa obra é exatamente essa sensação de perda, de deslocamento, de não saber por onde começar.. e esse conto de que falava possui grandes numeros na parte superior da pagina sugerindo que se siga uma "ordem", só que há vários tipos de numeros e inclusive, repetidos,então o leitor é forçado a ler várias e várias vezes de diversas maneiras, ara chegar a construir um sentido master. Delicia de livro, ótima sugestão.
http://miaummm.spaces.live.com
(Mirian Conci - )