sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Amor

por Naiane Rafagnim*


Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse o outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca. (LISPECTOR, 1990, p.135)

Como conclusão da disciplina Teoria da Literatura, no primeiro período de Letras, estudei o conto Amor de Clarice Lispector. Tive em Amor um verdadeiro encontro com a Literatura, só mais tarde descobri o que me impressionou tanto, “os enigmas”, ou seja, procurava uma resposta para o que aconteceu com a personagem, mas o texto não me respondia e fazia mais perguntas. Desta forma encontrei as potencialidades da literatura, entre elas, a potencialidade enigmática do texto literário.

O conto Amor, narrado em 3ª pessoa do singular conta a história de Ana, mulher casada, com filhos, que tem uma vida rotineira. Em um dia como os outros, Ana, ao voltar para casa, sobe em um bonde que passa por um ponto, onde ela vê um cego mascando chicletes. Este acontecimento muda sua rotina, causando desordem e perturbação em sua consciência, fazendo-a passar do seu ponto de descida. Andou um pouco indo parar no Jardim Botânico, ficando lá por algum tempo. Quando voltou à “realidade”, foi para casa e tentou voltar à sua rotina, mas ficou marcada por esse momento.

O texto é rico em imagens, e tem sempre o retorno da imagem do cego mascando chicletes, uma imagem enigmática que dá sustentação ao texto, pois é a imagem do cego que provoca algo em Ana: “Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um cego mascava chicles”. O que o cego provocou em Ana? Será que o mesmo que a barata provocou em G.H., no livro Paixão Segundo GH? Os textos não trazem respostas e sim infinitas possibilidades de leitura.

O que a imagem do cego faz em Ana não é possível responder, mas pode-se chegar à idéia de que Ana já não é mais a mesma, como se houvesse um desdobramento do eu (Ana) em outro para explicar o próprio eu, ou seja, Ana vê na imagem do cego mascando chicletes sua própria vida. É a imagem do cego mascando chicletes que revela um olhar do eu para o próprio eu, ou seja, “[...] revela-se um olhar que nem sempre vem de fora – do outro – mas é provocado por um deslocamento interno, um desdobramento, onde o eu desfocado é que produz o olhar” (CURI, 2001, p. 156).

Ana é muito semelhante à GH. Tanto em Amor quanto em Paixão Segundo GH, as personagens transformam-se no momento em que vêem algo inexpressivo, Ana vê o cego mascando chicletes, GH vê uma barata; as duas imagens neutras. É a partir desses acontecimentos que as personagens passam a pensar, refletir sobre elas mesmas, como um mergulho na consciência. É a partir do neutro que Ana e GH passam a observar pequenas coisas, que antes eram despercebidas. Ana é uma dona de casa, sempre com os mesmos afazeres. Há algo mais expressivo do que levar uma vida mecânica, como se fosse uma máquina que repete os mesmos movimentos todos os dias? Quem é o cego? Aquele que Ana vê mascando chicletes ao passar por um ponto, ou aquela que nem vê o que se passa ao seu redor? GH também é marcada por uma vida de rotina. Está tomando café como todos os dias, quando vai ao quarto da empregada que deixou o emprego e lá ela vê a barata que provoca algo que a deixa desconcertada (fora do lugar); assim como Ana, GH não é mais a mesma, “O que vi arrebenta a minha vida diária” (LISPECTOR, 1998, p.17).

Ana e GH pareciam estar presas a algo que se quebrou ao encontrarem-se com o neutro (cego e a barata): elas deixam de ser expressivas e passam a pensar/ver, “Sabia que estava fadada a pensar pouco, raciocinar me restringia dentro da minha pele. Como pois inaugurar em mim o pensamento? (LISPECTOR, 1998, p.19). As personagens ao encontrarem com o cego e a barata, respectivamente, encontram o enigmático e sentem-se incomodadas como se estivessem em outro lugar, “[...] que nova terra era essa?”(LISPECTOR, 1990, P.136). As próprias personagens buscam respostas para os enigmas, “O que faria se seguisse o chamado do cego?”(LISPECTOR, 1990, p.136);

Terá sido o amor o que vi? Mas que amor é esse tão cego como o de uma célula-ovo? Foi isso? Aquele horror, isso era amor? Amor tão neutro que – não, não quero ainda me falar, falar agora seria precipitar um sentido como quem depressa se imobiliza na segurança paralisadora de uma terceira perna. (LISPECTOR, 1998, p.19-20).

Ana e GH tiveram um encontro com o enigmático, embora encontros um tanto “banais”, é o que move a literatura de Clarice Lispector em Amor e Paixão Segundo GH. O texto nos convida para leituras “inexpressivas”, a ter um verdadeiro encontro com a literatura. Como diz G.H.: “Às vezes ─ às vezes nós mesmos manifestamos o inexpressivo ─ em arte se faz isso, em amor de corpo também ─ manifestar o inexpressivo é criar” (LISPECTOR, 1998, p.142). O encontro com o cego e com a barata é pode ser lido como um encontro com a literatura, a literatura inexpressiva (sem expressão), pois ela trabalha com as pequenas coisas que passam despercebidas, o enigmático, para o qual não há respostas definitivas, mas que nos faz pensar e tem sempre um conhecimento novo a nos apresentar.

REFERÊNCIAS

CURI, Simone. A escritura nômade em Clarice Lispector. Chapecó: Argos, 2001.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

TUFANO, Douglas. Estudos de Língua e Literatura. São Paulo: Moderna, 1990.

* Acadêmica do 8º período do Curso de Letras da Unochapecó.

O Mez da Grippe

por Juliane F. Kuhn


O mez da grippe, de Valêncio Xavier, foi publicado em 1998, pela Companhia das Letras. É uma obra que intriga o leitor logo na primeira página. Em uma mistura de realidade e ficção, a leitura se funde entre as notícias da época em que o Brasil sofreu com a epidemia de gripe espanhola e o mundo foi acossado pela ascensão do nazismo alemão. A cidade de Curitiba passa a ser uma cidade deserta, conforme alguns relatos do livro, no entanto, vasto campo para histórias que ficam entremeadas ao longo das páginas.

Como o poema que se desenrola ao longo do livro, contando a história de uma espécie de “flaneur” interiorano, um homem que vagueia pela cidade deserta pela gripe. O leitor é levado a acompanhar sua trajetória quando entra em uma casa mais habitada pela “hespanhola” do que por seus verdadeiros moradores. Quando encontra uma mulher febril e vai descrevendo suas características, a história vai ganhando contornos com o auxílio dos anúncios comerciais e os relatos de pessoas que viveram na época. A distância temporal entre a época em que a gripe espanhola assolava o Brasil e a época em que o livro foi publicado pode levar o leitor a uma idéia de releitura dos fatos, recortes de acontecimentos que fizeram parte de um período nebuloso da história.

Há um trecho do conto que relata um dos momentos do ápice da gripe: no poema que é escrito em meio às notícias e notificações públicas o homem que percorre a cidade entra a esmo em uma casa e possui uma mulher com febre. E aí vem a dúvida: “Ela geme/ baixinho, não mais de febre/ agora de gôzo?”

A dúvida imposta ao homem é a mesma reinante no resto da cidade, tomada pela febre. Esse trecho marca o momento em que todas as narrativas começam a ser regradas pela febre, febris em sua composição.

Além da gripe há as notícias sobre a iminência e desenrolar da 2ª Guerra Mundial, desde a expansão do domínio nazista pela Europa. Essas notícias, que parecem recortadas ao acaso, lembram uma leitura tomada pela febre, em que se chocam e misturam informações variadas sobre todos os assuntos ocorridos na sociedade, desde classificados de jornal a notícias dos avanços bélicos.

Entretanto, a medida que a epidemia de gripe vai avançando em Curitiba o texto também passa a ser tomado pela gripe. Ela passa a ser realmente o assunto central da obra, todas as outras histórias vão se evanescendo, vão sendo esquecidas ou menos comentadas ou, até mesmo, abafadas pela febre. As notícias de guerra, por exemplo, tão comentadas no início do livro, vão sendo deixadas de lado e virando somente manchetes bombásticas, rareando seu aparecimento nas páginas. A própria Guerra, preocupação central no mundo, passa para um segundo plano. Até que no auge de um delírio, que poderia se afirmar “febril”, aparece a manchete: “O KAISER ESTÁ COM HESPANHOLA”.

Assim, o que era desconsiderado a princípio (já que, como costumeiramente é feito, não se divulgou a real situação para não instaurar o caos) toma a frente e regula as relações na sociedade, que é dividida entre os que contraíram a gripe e os sãos. A própria redação do jornal que acompanha todos os fatos locais e internacionais é desfalcada pela epidemia.

Um estado (verdadeiramente de sítio, já que não era possível sair, para não contrair nem passar o vírus adiante) caótico que lembra algo de insanidade de toda a população. Mas o fato mais curioso é que toda o desenvolvimento da história se dá através da imprensa, que apazigua os possíveis acessos de pânico criados pelo temor da epidemia, bem como informa dos sucessos do que acontece lá fora. Entretanto, mesmo ela é aplacada pela febre e o final só conta com os números da tragédia, não da Guerra, mas da virose. Uma verdadeira narrativa do caos, em que realidade (?) e ficção não simplesmente se mesclam, mas se entretecem. Através de relatos que podem ser poemas, que podem ser notícias de jornais, que podem ser avisos de utilidade pública. Assim, traça-se um espaço vago para a certeza e o enigma da obra passa a ser o que realmente acontecia na época? Qual ponto da narrativa pode ser considerado um fato? Qual o limite da ficção febril num “mez da grippe”?

Fractal e no meio do caminho

por Marcia Bombana*

Escolhi os poemas “Fractal”, de Carlito Azevedo, e “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade, para a realização desta análise pelo fato do primeiro ser uma releitura e estabelecer intertextualidade com o segundo, do qual gosto muito. O conteúdo exposto nos dois poemas é praticamente o mesmo, o que muda, porém, de um poema para outro, é a forma de trazer novamente para o papel algo que já estava escrito em outro lugar: é como se a voz do poema “Fractal” tivesse constituído-se a partir da leitura do poema “No meio do caminho” e o contasse sob o seu próprio ponto de vista.

O que chama a atenção no poema analisado é o impasse formado através das incessantes repetições dos versos ao longo do poema. É porque existe o obstáculo que existe a repetição, e é porque existe a repetição que se percebe o obstáculo. O poema mostrou-se um obstáculo para durante a leitura no sentido de que me propus a fazer um estudo sobre ele. Apresentou-se como um mineral da natureza das rochas duro e sólido, isto é, um enigma no meio do meu caminho de leitora, fazendo com que eu me detesse a analisá-lo.

A estrutura repetitiva do poema remete à forma de um fractal, objeto que dá nome ao poema de Carlito Azevedo. O termo fractal refere-se a um mineral que reproduz infinitas vezes o lugar de onde se originou. Assim, a repetição dos versos lembra a forma do objeto descrito.

Os poemas, tanto “Fractal” de Carlito Azevedo quanto “No meio do caminho” de Carlos Drummond de Andrade, expressam uma situação de dificuldade, de impedimento, de impasse. O obstáculo não atinge só o poeta, mas o poema todo, pois este acaba com a mesma dificuldade exposta no primeiro verso, descrevendo repetidamente o obstáculo que a pedra representa. A insistência repetitiva manifesta a própria presença da pedra e do poema, intransponíveis no meio do caminho. Se o fato de que tinha uma pedra (ou “um mineral da natureza das rochas duro e sólido”) no meio do caminho (ou “no meio da faixa de terreno destinada a trânsito”) fosse dito só uma vez, seria simplesmente uma constatação. Porém, a incessante repetição da mesma imagem por quatro vezes, com algumas variações e inversões, aumenta o volume da pedra e do poema, tornando-os mais pesados.

O poema “Fractal”, se visto sob o olhar teórico, relaciona-se com o que Paolo Virno chamou de anacronismo formal. Pode-se dizer que a voz presente no poema está se utilizando de uma das características deste tipo de anacronismo: está recordando, aplicando o passado ao presente. A voz conta algo que já aconteceu, isso observa-se pelo fato de o verbo estar conjugado no pretérito: “No meio da faixa de terreno destinada a trânsito tinha um mineral da natureza das rochas duro e sólido”. Segundo Virno, o que torna possível o passado estar no presente é o fato de alguém recordar e usar-se de intertextualidade para produzir algo que faça sentido, algo que lembre o fato acontecido.

Tratando-se de intertextualidade, pode-se dizer que além dela acontecer em relação a um tempo e outro, manifesta-se também entre dois textos. O poema “Fractal” é uma releitura de “No meio do caminho”, no qual as idéias dos dois são as mesmas, mudando apenas a forma de narrar o mesmo fato.

A insistente repetição dos versos parece interferir no psíquico do leitor. O obstáculo não se manifesta somente no sentido de haver um objeto estranho no caminho do eu-lírico, mas a dificuldade mostra-se também na estrutura do poema. A leitura do texto não flui, os versos que teimam em relatar o obstáculo prendem tanto o narrador quanto o leitor de maneira fascinante. As incansáveis repetições e a linguagem simples expressam a situação de dificuldade, de impedimento, de impasse que surpreende o homem durante a passagem por seus caminhos.

A repetição cansativa do fato cria uma harmonia de sons hipnotizantes, a qual sugere uma idéia fixa, mantendo o eu-lírico e o leitor presos ao acontecimento fantástico.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Record, 1998

AZEVEDO, Carlito. Sublunar. Rio de Janeiro: 7 letras, 2001.

_____. Fractal. In: Collapsus Linguae. Rio de Janeiro: Lynx, 1991.

VIRNO, Paolo. El recuerdo del presente: ensayo sobre el tiempo histórico. Buenos Aires: Paidós, 2003.

* Acadêmica do 8º período do Curso de Letras da Unochapecó.

Teatro

por Fabiane Panegalli*

O fato de a narrativa do livro “Teatro”, de Bernardo Carvalho, apresentar uma seqüência labiríntica, tornando a história transcendental, impossível de ser materializada em uma única instância da realidade, fez com que eu me interessasse por realizar uma leitura mais aprofundada da obra. O mistério apresentado no livro e muito pouco desvendado aguçou minha curiosidade por decifrar as entrelinhas da narrativa e, conseqüentemente, conhecer um pouco mais sobre a própria literatura.

A recordação apresenta-se como um elemento indispensável para entender o presente da narrativa. O livro de Bernardo Carvalho inicia já com o narrador lembrando de um presságio, o qual previa sua inserção na clandestinidade ou no terrorismo aos cinqüenta ou sessenta anos, o que se confirma ao longo da narrativa. No percorrer da história, o passado é recordado e comparado com os fatos presentes a fim de compreendê-lo, relacionando estes com aquele. A recordação também torna-se perigosa para o personagem-narrador ao longo da história, pois este sabia de coisas que o poderiam levar à morte. Assim, precisou fugir de sua própria vida antes que os poderosos assassinos se lembrassem de que ele sabia demais e poderia contar segredos que colocariam em risco o sigilo de graves crimes cometidos por seus superiores, antigos chefes.

A narrativa de “Teatro” mescla vários tempos no mesmo relato. Podem ser observados diversos fragmentos que não permitem que a história se materialize linearmente, pois a cada parágrafo misturam-se afirmações que remetem ao passado com outras que descrevem o presente. Além disso, o livro é dividido em dois capítulos bem distintos. No segundo capítulo “O meu nome” é narrada uma história diferente, por um outro narrador e com outras personagens daquelas apresentadas no primeiro capítulo “Os sãos”. O novo narrador passa a contar uma história que talvez seja a mesma relatada no capítulo anterior, mas por um ângulo totalmente diferente, uma visão oposta da primeira; como se fosse um reflexo, uma outra versão. O livro é constituído por diversos e embarralhados fragmentos na tentativa de compreender uma história através de seus diferentes momentos, construindo-se uma narrativa delirante em que o real confunde-se com a representação dos próprios fatos.

Para Paolo Virno, a recordação é a instância da memória que busca reconstituir os fatos a partir do que o sujeito lembra. Para o autor, somente é possível o passado estar no presente através da recordação do sujeito, reconstituição dos fatos conforme as lembranças, mesmo que seja a partir de um único ponto de vista. Assim, compreende-se que a história não é fato, mas lembrança do fato.

A forma estrutural da língua (passado, memória, instituição) é exemplo de como o anacronismo formal funciona. Ele consiste em aplicar o passado ao presente. Virno chama essa potência de relançar o passado em presente de “dynamis”, a força que permite lembrar. O que possibilita o passado estar no presente é o fato de alguém recordar e usar de intertextualidade para produzir algo que faça sentido, que lembre o enunciado/fato passado.

A maneira misteriosa com que é construída a narrativa assemelha-se ao enigma proposto no próprio livro. O leitor torna-se espectador de uma trama repleta de personagens com duas caras, deixando-o confuso em relação ao que realmente aconteceu e de quem realmente realizou determinadas ações. A total desconstrução que acontece no segundo capítulo em relação ao primeiro não permite que o leitor abandone o livro com muitas certezas. Fica-se, no final do livro, com muitas dúvidas em relação às personagens que são citadas tanto no capítulo “Os sãos” quanto no “Meu nome” e parecem não serem as mesmas por apresentarem muitas diferenças. Ana C., por exemplo, que no primeiro capítulo é apresentada como uma mulher, no segundo mostra-se como um homem, ator de filmes pornográficos, em contexto totalmente distinto do anterior.

Cabe, portanto, ao leitor a tarefa de desvendar os segredos dessa enigmática obra. Para isso, leva-se em conta que o texto literário só se materializa no momento em que recebe a visita do leitor e estabelece com este uma relação de corpo a corpo, ou seja, o leitor precisa penetrar no corpo do texto, usufruir do que está ali e aproveitar para a sua própria vida.


REFERÊNCIAS

CARVALHO, Bernardo. Teatro. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

VIRNO, Paolo. El recuerdo del presente: ensayo sobre el tiempo histórico. Buenos Aires: Paidós, 2003.

* Acadêmica do 8º período do Curso de Letras da Unochapecó.

O último leitor

por Mirian Conci*

“Porque escrever não é viver, porque ler também não é.”
(TOSCANA, 2005, P. 48)

O último leitor (2005) de David Toscana é um romance mexicano contemporâneo que trata de várias questões sobre a literatura, o homem e o tempo. A maneira como esses temas são abordados é que dão um tom especial e único ao Último leitor. A primeira pergunta que se faz ao ler o romance é: Quem é o último leitor? E num jogo tenso, o leitor sente um misto de surpresa, estupidez e um certo prazer ansioso ao se dar conta que é o próprio último leitor. A segunda pergunta provável, antes mesmo de se começar a ler é: se há um último, deve haver outros leitores, quem são eles? Esse texto não tem a pretensão de responder perguntas, mas de levantar alguns questionamentos relacionados ao último leitor, à literatura e compará-los com outro personagem: David, do filme Vanilla Sky, sob uma perspectiva anacrônica.

As relações afetivas entre as personagens primam à característica dos livros que tratam como tema a seca; são tão secos quanto a imagem do lugar, da vegetação, do ar. O lugar chama-se Icamole e é lá que acontece um crime. Como em todos os lugares secos, a água em Icamole também é escassa e motivo de cobiça. Remigio possui um poço que comporta sempre mais água que os outros e tarda a findar, já que seu consumo se resume praticamente a tomar banho e regar o abacateiro. Por isso é alvo de reboliço e inveja. Certo dia, ao buscar água, Remigio sente algo em seu poço, quando averigua, percebe se tratar do corpo de uma menina e ao retirá-la de lá, nota que o sapato dela se perdeu. Com medo de ser preso, já que a menina estava em sua propriedade e um sapato dela se perdera tornando-se prova incontestável, resolveu recorrer ao pai, Lúcio.

Lúcio vê na situação do crime uma cena em potencial de um romance e é através da literatura que Lúcio tenta solucionar não apenas os problemas do filho, mas as tantas outras inquietudes que lhe aparecem, como fome e desejo. Ao longo do romance Lúcio não descreve muitas experiências e nem tenta solucionar seus problemas, mas principalmente procura solucionar os problemas dos outros através da literatura mas não se dá conta de que não consegue suprir as próprias necessidades, os próprios hiatos, como se sua existência fosse a própria personificação da literatura, esperando um leitor real completá-la. Esquece-se talvez, por estar muito preocupado classificando em bons e ruins os seus romances. E quando percebe que não há experiência que substitua o grande hiato que é a vida, quando se dá conta que a literatura é um monte de leituras da vida e vice-versa, acaba por se auto-censurar num ato de lucidez, notando talvez, que ele mesmo deveria ser o leitor ímpar de sua vida e não vivê-la fragmentado através dos olhos das personagens de sua estante.

No filme Vanilla Sky (2001) de direção de Cameron Crowe, algo similar acontece. David Aames é um personagem bem sucedido em todas as áreas da vida, no entanto, lhe falta encantamento para sentir-se pleno, até o dia que conhece Sofia e apaixona-se. A partir desse instante, uma série de fatos acontecem até quase o final do filme, onde perdem-se as fronteiras entre ficção e realidade. Ao final, compreende-se que uma empresa conhecida por Life Extension fecha um contrato com o personagem David, a fim de congelá-lo para que numa extensão virtual possa viver a vida “como uma pintura”, através das principais personagens que povoaram sua vida, acolhendo a ela tudo que lhe apreciar mais. Um traço interessante é que as escolhas feitas para servirem de “cenário” numa vida virtual de David, são exatamente suas referências culturais como filmes, personagens, livros, capas de discos, bandas, músicas, pintores, sabores, cores, etc., como se a arte e a literatura, preenchessem já virtualmente a vida, antes mesmo, dela como um todo, tornar-se virtual. Do contrário, a vida sem literatura e referências culturais, seria uma vida “sem fundo”, sem cenário, sem cor, uma vida censurável. Assim como Lúcio, que ao perceber o imenso vazio, o cenário sem cor e sabor que é sua vida, apropria-se dos cenários das personagens de seus romances preferidos, para vivenciar através do outro as experiências.

O que une encantadoramente O último leitor e Vanilla Sky é a escolha de ambos pela vida, ao se darem conta que a melhor leitura é a que cada um faz enquanto último leitor de suas vidas. Por mais que a arte imite a vida e vice-versa, nada substitui a incrível aventura de viver. E viver não implica num quadro perfeito com as principais referências culturais (e as piores censuradas, excluídas), implica, sim, numa saga incontrolável porque nenhuma experiência, que não a da vida, pode assegurar as vivências boas ou ruins, através das escolhas, do livre arbítrio, mesmo que implique em escolhas erradas.

Dessa forma, tanto Lúcio quanto David optam em correr o risco de se viver de verdade, e não vivenciar o que alguém já viveu em uma história, ou, criar uma vida virtual perfeita. Lúcio, após censurar tantos livros, acaba por também se censurar. David, se suicida na vida virtual, e um ponto relevante é que, como na vida virtual, os cenários que ele escolheu com referência em sua bagagem cultural, separou seu maior medo para encarar a vida real: se jogar de um prédio muito alto. É clara a alusão de que inclusive os nossos medos nos formam e são designados a nós por nós mesmos, ninguém os determina, senão, nós.

Como a justificativa qualificativa de um romance está justamente em seus segredos, torna-se óbvio “o não descobrimento” deles e consequentemente, um não apoderamento do tempo, da vida, da morte. Exatamente por isso a cena do crime é secundária, serve apenas de gancho para criar esse tempo ficcional que o personagem Lúcio vive. Descobrir o assassino seria o mesmo que dar o romance às baratas, pois deterioraria com seus segredos. Anamari ou Babette são no romance, a representação da morte, que como a literatura, vive à espreita do homem, cercando, para que um dia, o personagem ou o último leitor saia de seu tempo ficcional incontrolável do conhecimento e caia do tempo real da morte. “Entra apressadamente em casa para pegar o machado, e com a mesma pressa percorre o quintal, brandindo a arma, descarregando-a nuns galhos secos, vai que quem trouxe a menina está escondido por ali.” (TOSCANA, 2005, P.9) E esse dia chega quando Lúcio se dá conta de toda a ficção e “falsa vivência”: “Venham, minhas Babettes, minhas Anamaris, putinhas de planta e de ocasião, minhas eternas mulheres que inevitavelmente amanhecem desfeitas e sem vida”. (TOSCANA, 2005, P.152)

Lúcio fecha à chave a porta da biblioteca. (TOSCANA, 2005, P.155)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CROWE, Cameron. Vanilla Sky 2001.

TOSCANA, David. O último leitor. Casa da palavra: São Paulo, 2005.

* Acadêmica do 8º período do Curso de Letras da Unochapecó