sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Amor

por Naiane Rafagnim*


Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse o outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca. (LISPECTOR, 1990, p.135)

Como conclusão da disciplina Teoria da Literatura, no primeiro período de Letras, estudei o conto Amor de Clarice Lispector. Tive em Amor um verdadeiro encontro com a Literatura, só mais tarde descobri o que me impressionou tanto, “os enigmas”, ou seja, procurava uma resposta para o que aconteceu com a personagem, mas o texto não me respondia e fazia mais perguntas. Desta forma encontrei as potencialidades da literatura, entre elas, a potencialidade enigmática do texto literário.

O conto Amor, narrado em 3ª pessoa do singular conta a história de Ana, mulher casada, com filhos, que tem uma vida rotineira. Em um dia como os outros, Ana, ao voltar para casa, sobe em um bonde que passa por um ponto, onde ela vê um cego mascando chicletes. Este acontecimento muda sua rotina, causando desordem e perturbação em sua consciência, fazendo-a passar do seu ponto de descida. Andou um pouco indo parar no Jardim Botânico, ficando lá por algum tempo. Quando voltou à “realidade”, foi para casa e tentou voltar à sua rotina, mas ficou marcada por esse momento.

O texto é rico em imagens, e tem sempre o retorno da imagem do cego mascando chicletes, uma imagem enigmática que dá sustentação ao texto, pois é a imagem do cego que provoca algo em Ana: “Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um cego mascava chicles”. O que o cego provocou em Ana? Será que o mesmo que a barata provocou em G.H., no livro Paixão Segundo GH? Os textos não trazem respostas e sim infinitas possibilidades de leitura.

O que a imagem do cego faz em Ana não é possível responder, mas pode-se chegar à idéia de que Ana já não é mais a mesma, como se houvesse um desdobramento do eu (Ana) em outro para explicar o próprio eu, ou seja, Ana vê na imagem do cego mascando chicletes sua própria vida. É a imagem do cego mascando chicletes que revela um olhar do eu para o próprio eu, ou seja, “[...] revela-se um olhar que nem sempre vem de fora – do outro – mas é provocado por um deslocamento interno, um desdobramento, onde o eu desfocado é que produz o olhar” (CURI, 2001, p. 156).

Ana é muito semelhante à GH. Tanto em Amor quanto em Paixão Segundo GH, as personagens transformam-se no momento em que vêem algo inexpressivo, Ana vê o cego mascando chicletes, GH vê uma barata; as duas imagens neutras. É a partir desses acontecimentos que as personagens passam a pensar, refletir sobre elas mesmas, como um mergulho na consciência. É a partir do neutro que Ana e GH passam a observar pequenas coisas, que antes eram despercebidas. Ana é uma dona de casa, sempre com os mesmos afazeres. Há algo mais expressivo do que levar uma vida mecânica, como se fosse uma máquina que repete os mesmos movimentos todos os dias? Quem é o cego? Aquele que Ana vê mascando chicletes ao passar por um ponto, ou aquela que nem vê o que se passa ao seu redor? GH também é marcada por uma vida de rotina. Está tomando café como todos os dias, quando vai ao quarto da empregada que deixou o emprego e lá ela vê a barata que provoca algo que a deixa desconcertada (fora do lugar); assim como Ana, GH não é mais a mesma, “O que vi arrebenta a minha vida diária” (LISPECTOR, 1998, p.17).

Ana e GH pareciam estar presas a algo que se quebrou ao encontrarem-se com o neutro (cego e a barata): elas deixam de ser expressivas e passam a pensar/ver, “Sabia que estava fadada a pensar pouco, raciocinar me restringia dentro da minha pele. Como pois inaugurar em mim o pensamento? (LISPECTOR, 1998, p.19). As personagens ao encontrarem com o cego e a barata, respectivamente, encontram o enigmático e sentem-se incomodadas como se estivessem em outro lugar, “[...] que nova terra era essa?”(LISPECTOR, 1990, P.136). As próprias personagens buscam respostas para os enigmas, “O que faria se seguisse o chamado do cego?”(LISPECTOR, 1990, p.136);

Terá sido o amor o que vi? Mas que amor é esse tão cego como o de uma célula-ovo? Foi isso? Aquele horror, isso era amor? Amor tão neutro que – não, não quero ainda me falar, falar agora seria precipitar um sentido como quem depressa se imobiliza na segurança paralisadora de uma terceira perna. (LISPECTOR, 1998, p.19-20).

Ana e GH tiveram um encontro com o enigmático, embora encontros um tanto “banais”, é o que move a literatura de Clarice Lispector em Amor e Paixão Segundo GH. O texto nos convida para leituras “inexpressivas”, a ter um verdadeiro encontro com a literatura. Como diz G.H.: “Às vezes ─ às vezes nós mesmos manifestamos o inexpressivo ─ em arte se faz isso, em amor de corpo também ─ manifestar o inexpressivo é criar” (LISPECTOR, 1998, p.142). O encontro com o cego e com a barata é pode ser lido como um encontro com a literatura, a literatura inexpressiva (sem expressão), pois ela trabalha com as pequenas coisas que passam despercebidas, o enigmático, para o qual não há respostas definitivas, mas que nos faz pensar e tem sempre um conhecimento novo a nos apresentar.

REFERÊNCIAS

CURI, Simone. A escritura nômade em Clarice Lispector. Chapecó: Argos, 2001.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

TUFANO, Douglas. Estudos de Língua e Literatura. São Paulo: Moderna, 1990.

* Acadêmica do 8º período do Curso de Letras da Unochapecó.

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