sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Teatro

por Fabiane Panegalli*

O fato de a narrativa do livro “Teatro”, de Bernardo Carvalho, apresentar uma seqüência labiríntica, tornando a história transcendental, impossível de ser materializada em uma única instância da realidade, fez com que eu me interessasse por realizar uma leitura mais aprofundada da obra. O mistério apresentado no livro e muito pouco desvendado aguçou minha curiosidade por decifrar as entrelinhas da narrativa e, conseqüentemente, conhecer um pouco mais sobre a própria literatura.

A recordação apresenta-se como um elemento indispensável para entender o presente da narrativa. O livro de Bernardo Carvalho inicia já com o narrador lembrando de um presságio, o qual previa sua inserção na clandestinidade ou no terrorismo aos cinqüenta ou sessenta anos, o que se confirma ao longo da narrativa. No percorrer da história, o passado é recordado e comparado com os fatos presentes a fim de compreendê-lo, relacionando estes com aquele. A recordação também torna-se perigosa para o personagem-narrador ao longo da história, pois este sabia de coisas que o poderiam levar à morte. Assim, precisou fugir de sua própria vida antes que os poderosos assassinos se lembrassem de que ele sabia demais e poderia contar segredos que colocariam em risco o sigilo de graves crimes cometidos por seus superiores, antigos chefes.

A narrativa de “Teatro” mescla vários tempos no mesmo relato. Podem ser observados diversos fragmentos que não permitem que a história se materialize linearmente, pois a cada parágrafo misturam-se afirmações que remetem ao passado com outras que descrevem o presente. Além disso, o livro é dividido em dois capítulos bem distintos. No segundo capítulo “O meu nome” é narrada uma história diferente, por um outro narrador e com outras personagens daquelas apresentadas no primeiro capítulo “Os sãos”. O novo narrador passa a contar uma história que talvez seja a mesma relatada no capítulo anterior, mas por um ângulo totalmente diferente, uma visão oposta da primeira; como se fosse um reflexo, uma outra versão. O livro é constituído por diversos e embarralhados fragmentos na tentativa de compreender uma história através de seus diferentes momentos, construindo-se uma narrativa delirante em que o real confunde-se com a representação dos próprios fatos.

Para Paolo Virno, a recordação é a instância da memória que busca reconstituir os fatos a partir do que o sujeito lembra. Para o autor, somente é possível o passado estar no presente através da recordação do sujeito, reconstituição dos fatos conforme as lembranças, mesmo que seja a partir de um único ponto de vista. Assim, compreende-se que a história não é fato, mas lembrança do fato.

A forma estrutural da língua (passado, memória, instituição) é exemplo de como o anacronismo formal funciona. Ele consiste em aplicar o passado ao presente. Virno chama essa potência de relançar o passado em presente de “dynamis”, a força que permite lembrar. O que possibilita o passado estar no presente é o fato de alguém recordar e usar de intertextualidade para produzir algo que faça sentido, que lembre o enunciado/fato passado.

A maneira misteriosa com que é construída a narrativa assemelha-se ao enigma proposto no próprio livro. O leitor torna-se espectador de uma trama repleta de personagens com duas caras, deixando-o confuso em relação ao que realmente aconteceu e de quem realmente realizou determinadas ações. A total desconstrução que acontece no segundo capítulo em relação ao primeiro não permite que o leitor abandone o livro com muitas certezas. Fica-se, no final do livro, com muitas dúvidas em relação às personagens que são citadas tanto no capítulo “Os sãos” quanto no “Meu nome” e parecem não serem as mesmas por apresentarem muitas diferenças. Ana C., por exemplo, que no primeiro capítulo é apresentada como uma mulher, no segundo mostra-se como um homem, ator de filmes pornográficos, em contexto totalmente distinto do anterior.

Cabe, portanto, ao leitor a tarefa de desvendar os segredos dessa enigmática obra. Para isso, leva-se em conta que o texto literário só se materializa no momento em que recebe a visita do leitor e estabelece com este uma relação de corpo a corpo, ou seja, o leitor precisa penetrar no corpo do texto, usufruir do que está ali e aproveitar para a sua própria vida.


REFERÊNCIAS

CARVALHO, Bernardo. Teatro. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

VIRNO, Paolo. El recuerdo del presente: ensayo sobre el tiempo histórico. Buenos Aires: Paidós, 2003.

* Acadêmica do 8º período do Curso de Letras da Unochapecó.

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