sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

O último leitor

por Carla Maria Sgnaulin*

Podemos acreditar num abismo entre a vida e o papel? Essa é uma questão que, de certa forma, estremece o leitor da obra de David Toscana, O último leitor. A exemplo a obra de Toscana: uma obra de ficção (A morte de Babette) inserida em outra (O último leitor) explica o desaparecimento de uma menina (Anamari) que aparece como real dentro da ficção O último leitor. A obra chama o leitor quando propõe a questão: quantos livros são necessários para explicar uma vida? Na relação leitor/obra, O último leitor oferece personagens leitores e, ao mesmo tempo, insere o leitor como personagem para intensificar o enigma: como encontrar na literatura um sentido à vida?
A obra começa quando Remigio (filho de Lúcio) encontra o corpo de uma menina morta dentro do seu poço. A partir disso Remigio busca desesperadamente uma forma de desaparecer/enterrar o corpo. Ansioso para encontrar a solução Remigio procura seu pai, o bibliotecário Lúcio, para que este solucione o problema; se espanta quando seu pai começa a ler trechos de romances para explicar o destino que deve ser dado ao corpo. Depois aparece a mãe de Anamari com a pretensão de encontrar o corpo da filha, aquele que foi encontrado e enterrado por Remigio, conforme a leitura dos trechos de romance que seu pai selecionou, em especial A macieira, que Remigio leu na íntegra. Somente a mãe e Lúcio sabem de tudo que aconteceu com Anamari, pois ambos leram o mesmo romance, A morte de Babette. O próprio ato de leitura explica a vida na pequena Icamole, agindo como o protagonista da obra.

Em O último leitor o envolvimento da vida com a literatura é tão intenso que a vida de Anamari é explicada pelo livro de ficção, A morte de Babette. No entanto, o livro de ficção não desvenda o enigma da vida de Anamari. A personagem Babette, assim como Anamari, é uma menina desaparecida que apresenta muitas semelhanças físicas com a segunda: olhos claros, cabelos negros e uma pinta na bochecha esquerda. A pinta que nasceu em Babette seria uma lágrima petrificada do que viria a acontecer, mais tarde, com Anamari: "(...) um romance fala de coisas que acontecem, e, assim, o tempo da história contrasta com o do romance, que Lúcio chama de presente permanente, um tempo imediato, tangível e autêntico. Nesse tempo, Babette existe, é mais real que um herói da pátria sepultado no panteão dos homens ilustres; Babette jamais poderia estar numa estante com a etiqueta de ficção; nesse presente permanente uma mão misteriosa pega Babette novamente cada vez que se abre o livro na última página, e a menina irremediavelmente joga seu guarda-chuva no Sena no capítulo doze; Babette não é pó nem vai retornar ao pó" (TOSCANA, 2005, p. 95).

Com as imagens do romance de Pierre Laffitte, A morte de Babette, impressas na mente, o bibliotecário Lúcio e a mãe de Anamari entendem que o romance de Laffitte foi escrito para explicar, o que viria a ser mais tarde, o desaparecimento e a morte de Anamari: "achar Anamari é mais complicado que isso, teriam que perguntar a Pierre Laffitte, pedir a ele que escreva a segunda parte de A morte de Babette e dê detalhes do interior da mansão ou palácio ou masmorra de onde saiu o braço que a arrebatou do mundo e das páginas" (p. 85). A obra parece enviar outra pergunta ao leitor:como calar a morte?

Ao pensar que Babette é a própria literatura, "Babette é prosa que é poesia" (p. 119), que o abacateiro de Remigio é um homem, é possível acreditar que é a literatura que não deixa o "homem secar", mesmo que esse tenha que enfrentar uma terrível seca de leitores de literatura: "aqui está Babette, (...) embaixo do abacateiro que se vê à direita, a única árvore verde que nos resta. Todo o mar se inundou de deserto, mas resta a ilha de Babette" (p. 107).

É por meio do ato de leitura que as relações humanas acontecem tanto na vida real, como na ficção: Remigio e Lúcio se aproximam; Lúcio se apaixona pela mãe de Anamari: "os livro que conservo são a vida, e a vida ergue um muro entre essa mulher e eu" (p. 122); Laffitte ama sua personagem Babette: "Laffitte amava Babette, mas deve ter permitido que ela se perdesse atrás da porta. Ele sabia que a literatura condena (p. 122); Remigio se apaixona por Anamari: "ela veio para isso, para habitar para sempre em você" (p. 123); Lúcio lembra Herlinda: "já são muitos livros, diz, e nem ao menos me aproximei dela. Há mulheres de cidade, sofisticadas ou violentas, ou putas, nada como Herlinda" (p. 122);

"Há muito mais livros do que vida", e nem uma biblioteca inteira conta uma vida, mesmo que a biblioteca seja o palácio da memória, até porque uma vida não se constrói somente com memória. A literatura não aconteceu, ela sempre acontece, cada vez que abrimos a página de um livro. A literatura não deixa o homem secar porque é imaginação e "a imaginação é mais brilhante que os fatos; o desejo, mais intenso que o prazer; a dúvida, mais opressiva que a evidência" (p. 127). Assim, a potência da literatura está na capacidade de tornar ausências presentes, de viver em mundos inacessíveis e "ampliar as possibilidades existenciais de cada um", uma vez que a literatura lida com a essência do humano. A obra quer, de certa forma, resgatar em cada um de nós o desejo de ser "o último leitor. Quem sabe um dia você encontre trechos de sua vida em um romance qualquer, esquecido em uma biblioteca qualquer?

Referência

TOSCANA. David. O último leitor. Trad. Ana Lúcia Pelegrino e Magali Pedro. Casa da palavra: Rio de Janeiro, 2005.

* Acadêmica do 8º período do Curso de Letras da Unochapecó.

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