sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

As Iniciais

por Maristela Chagas Ferreira*

Das leituras que fiz durante a graduação de Letras o romance As Iniciais (1999) de Bernardo Carvalho foi uma das obras que mais chamou minha atenção pelo seu caráter enigmático, tomado de incertezas, segredos e impossibilidades que dão à narrativa um tom de mistério entremeado de situações intrigantes e contraditórias que colocam em jogo questões cotidianas vividas pelas personagens, tão semelhantes (em alguns aspectos) as questões da nossa vida, como os sentimentos (des) humanos, seus comportamentos e suas reações.


A obra está dividida em duas partes "A." e "D.". Na primeira parte, tudo acontece em um jantar num mosteiro em algum lugar não identificado e tão enigmático quanto a sua apresentação e de suas personagens, que são identificadas somente pelas iniciais. Durante o jantar uma das personagens (o narrador) recebe uma caixinha contendo algumas letras, VMDS, iniciando assim, uma busca obsessiva, pelo seu significado, dando à trama um tom de suspense que se mantêm durante toda obra, devido ao alto teor de tensão gerado pela angústia que parece acompanhar o narrador, que sofre diante da impossibilidade de desvendar o mistério contido nas iniciais.

Na segunda parte, dez anos depois, durante um almoço numa fazenda em um lugar não identificado (será o Brasil?), o narrador dá continuidade na sua obsessão pela decifração das iniciais e, pensando reconhecer num dos convidados uma das pessoas presentes no jantar do mosteiro, tem a certeza de estar próximo da chave que guarda o significado do segredo que se esconde por traz das iniciais. Novamente, o narrador encontra-se enredado numa espécie de labirinto e, quanto mais avança mais aumenta o mistério e o desejo de se saber o que aconteceu.

Narrado em primeira pessoa, o romance desde o início é enredado por um clima de suspense, com um ritmo intenso que se mantêm em toda a obra, devido às situações estranhas, descritas pelo narrador, um jornalista e também escritor que observa e relata tudo o que se passa a seu redor. Na narrativa, tanto os lugares quanto suas personagens não possuem nomes próprios, somente iniciais, colocando o leitor na mesma posição/problema enfrentado pelo narrador: dar um sentido para as iniciais. A dúvida, o enigma, é o centro dessa ficção.

O narrador, nas suas tentativas de decifrar o enigma em torno d'As iniciais gravadas na tampa da caixinha que recebeu, espalhou pela obra traços de personalidades, comportamentos, reações e estados de espírito dele e das outras personagens, através das situações por eles vividas, que são semelhantes, em muitos aspectos, aos traços da humanidade, como o jogo de interesses que rondava os relacionamentos, as atitudes, os olhares e as insinuações relatadas pelo narrador, fazendo-nos lançar um novo olhar sobre nossa própria condição humana, nossos pensamentos, comportamentos, reações e sentimentos diante da vida e do mundo, que são tão instáveis, imprevisíveis e passíveis de questionamentos quanto os descritos pelo narrador em seu longo caminho percorrido em As iniciais, um caminho totalmente labiríntico (sem fim), misterioso e incerto como a vida e o mundo.
Esse é um dos pontos fundamentais para se pensar a relação forte que há entre Literatura, vida e mundo que Antônio Cândido propõe: a arte como sendo "a vida em resumo", pois funciona como forma de (re) conhecimento do mundo e da própria constituição do ser.No caso d'As iniciais, o elo que liga a literatura à vida e ao mundo é o percurso enigmático, sombrio, tenso e cheio de expectativas percorrido pelo narrador durante sua busca obsessiva pela decifração d'As iniciais. Percurso semelhante ao da existência humana, devido aos imprevistos e acontecimentos a que somos submetidos diariamente e, nesse ponto, nos tornamos seres muito parecidos com as personagens das iniciais, especialmente com o narrador, por sermos assim como ele movidos por um desejo obsessivo de explicar o inexplicável, ou seja, a vida, passando grande parte da nossa existência buscando compreender (decifrar) as coisas do mundo.

No poema carrego comigo, de Drummond o eu lírico parece viver uma situação muito semelhante a do narrador de As iniciais. No poema, assim como no romance, o clima é tenso e misterioso e, tanto o eu lírico, que carrega consigo há dezenas, há centenas de anos um pequeno embrulho, com algo indescritível, quanto o narrador de As iniciais vêem-se impotentes diante de uma situação que não conseguem resolver. Assim, no lugar de verdades e doces resoluções, ambas as leituras nos convidam para uma grande reflexão acerca dos enigmas da vida e do mundo e nos ajudam a tentar compreendê-los um pouco melhor.

Tanto o romance quanto o poema são fortemente marcados pelas incertezas e pelas múltiplas possibilidades de leituras, pois nem na narrativa, nem no poema são encontradas respostas, mas sim uma infinidade de questionamentos, o que nos permite pensar a configuração do literário como sendo um universo aberto as mais variadas interpretações, um mundo que "caminha" ao lado do nosso mundo e que só tem vida na companhia do leitor.


Referências

CARVALHO, Bernardo. As iniciais. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

CANDIDO, Antonio. Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Unesp, 1992.

* Acadêmica do 8º período do Curso de Letras da Unochapecó.

Nenhum comentário: